A ficção científica já nos mostrou vários exemplos de como a tecnologia pode ser usada para resolver problemas de segurança. Minority Report: A Nova Lei, por exemplo, mostrou Tom Cruise utilizando um sistema capaz de prever crimes antes mesmo que elas acontecessem e o jogo Watch Dogs partiu da ideia de um esquema de monitoramento e controle urbano totalmente integrado e que acompanhava tudo o que acontecia nas ruas. E eles são apenas dois entre uma lista enorme de ideias parecidas.
No entanto, esse conceito está deixando de ser algo exclusivo da ficção e começa a entrar de maneira mais contundente em nossas vidas. As notícias de aparatos tecnológicos sendo usados para esse propósito são cada vez mais frequentes e, aos poucos, vamos nos acostumando com essas novidades do mesmo modo como as câmeras de segurança já são parte da paisagem urbana.
Mas até que ponto esses avanços são realmente positivos? Afinal, o cinema e a literatura também já nos mostraram diversas vezes que nem sempre essa tecnologia em prol da segurança é algo tão positivo assim e quase sempre traz algum tipo de problema maior do que o original. Será que estamos mesmo preparados para receber esse tipo de coisa ou é apenas mais uma paranoia dos tempos modernos?
Drone Negro em Perigo
De todas as grandes novidades que apareceram nos últimos anos, nenhuma se tornou tão relevante quanto o drone. Esses pequenos veículos voadores não tripulados já tomaram o céu do mundo para uma série de atividades, seja para tirar uma foto mais ousada, fazer um vídeo panorâmico ou mesmo criar o fantasma da Segunda Divisão para zoar o time rival. E era claro que ele logo seria adaptado para cuidar da segurança de cidades.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a Federal Aviation Administration já regulamentou o uso desse tipo de dispositivo para os órgãos de defesa patrulharem áreas de fronteiras. Como aponta o site Governing, entre os anos de 2010 e 2012 foram mais de 700 missões de monitoramento feitas pela Guarda Costeira, pelo departamento de combate às drogas e até mesmo pelas autoridades relacionadas à imigração no país. Com isso, os drones conseguiram localizar plantações ilegais de maconha, laboratórios de metanfetamina e até encontrar pessoas perdidas em locais de difícil acesso.
Mais do que isso, no estado norte-americano da Dakota do Norte, uma lei local permitiu que a polícia da região equipasse os aparelhos voadores com armas não letais. Assim, mais do que apenas vigiar, os drones também podem punir criminosos com spray de pimenta, tasers, bombas de gás lacrimogêneo e até mesmo balas de borracha. E é aí que surge a polêmica.
O uso de drones por departamentos de segurança é algo que sempre gerou muita discussão, uma vez que isso pode ser usado para violar vários direitos, sobretudo de privacidade. Atualmente, para que seja possível fazer uma busca em uma propriedade, os policiais dependem de um mandado judicial. No entanto, esses dispositivos podem simplesmente sobrevoar qualquer área, filmá-la e tirar fotos à vontade sem que você nem saiba do que está acontecendo. É quase como se o Grande Irmão, de 1984, estivesse sempre sobrevoando sua vida para saber o que você anda fazendo.
Mais do que isso, a liberação de armas não letais nesses equipamentos é igualmente complicada. Ainda usando os Estados Unidos como exemplo, basta imaginar como seriam os protestos de Ferguson do ano passado se, ao invés de se confrontarem contra os policiais, os manifestantes estivessem cercados por drones. É um tipo de luta desigual e bastante opressor que pode colocar mais pólvora dentro do debate de abuso de poder e violência por parte de agentes de segurança.
Isso sem falar, é claro, que a mesma tecnologia que faz o bem também pode servir para o mal. Não foram poucas as vezes em que criminosos foram presos tentando usar drones para levar armas e drogas para dentro de penitenciárias, além de espionar a própria ação da polícia.
Ficha eletrônica
Outra tecnologia que é bastante promissora, mas gera bastante discussão é o uso de leitores biométricos para identificar suspeitos. Olhando por cima, realmente parece ser uma ideia incrível ter um banco de dados igual ao do Batman com todos os criminosos conhecidos e usar um único dispositivo para reconhecê-los em qualquer lugar do país, mas sempre há o "porém" da questão.
Ainda nos EUA, policiais de diversas cidades já contam com aparelhos capazes de reconhecer uma pessoas somente a partir de impressão digital ou mesmo de reconhecimento facial. Isso sem falar de outras técnicas que estão sendo desenvolvidas para deixar todo esse processo ainda mais preciso, como leitura de íris e até mesmo reconhecimento de tatuagem.
Essa é uma ideia que, mais uma vez, a ficção já nos apresentou diversas vezes e que faz muito sentido dentro de nossa sociedade. Afinal, quando uma pessoa é presa, ela acaba sendo fichada e a ideia desse tipo de tecnologia é permitir que qualquer oficial tenha acesso a essas informações, mesmo estando na rua. Isso iria permitir uma abordagem mais precisa de suspeitos e até mesmo de foragidos. O criminoso pode estar do outro lado do país e, ainda assim, um guarda de trânsito consegue descobrir que ele é procurado por assassinato, podendo prendê-lo na hora. É uma forma bem interessante de unificar todas as unidades de segurança de um país.
Só que, mais uma vez, esse é o tipo de coisa que abre margem para abuso de autoridade e outras questões mais invasivas. Tanto que a Electronic Frontier Foundation, um órgão de defesa de direitos individuais na era digital, recebeu várias denúncias de abordagens abusivas de policiais referentes a esses testes. Segundo a agência, o medo da população é que essas blitzes sejam usadas para fichar pessoas inocentes do que realmente procurar um criminoso.
Parece um pouco de paranoia, mas é uma preocupação bastante real e plausível. É mais ou menos como acontece em Capitão América 2: Soldado Invernal, quando o herói questiona a SHIELD sobre a validade de monitorar pessoas que nunca fizeram nada pelo simples motivo de acharem que eles podem se tornar criminosos. Quando essa situação deixa o cinema para atingir a realidade é que a coisa fica realmente complicada.
Assim como no Brasil, a questão racial ainda é um ponto bastante delicado na sociedade norte-americana. Policiais são acusados de agirem com violência em abordagem contra negros e essa desconfiança por conta da raça é algo que ainda incomoda bastante. Então não seria de estranhar essa resistência diante desses leitores biométricos, que são vistos muito mais como uma maneira de fichar esse pessoal do que realmente servir para encontrar alguém. Assim, o que deveria ser usado para otimizar o serviço de segurança acaba se tornando uma ferramenta que reforça o preconceito.
Para contornar toda essa questão e mostrar que a coisa não é bem assim, o departamento de polícia de várias cidades se comprometeram a compartilhar alguns dados com a Electronic Frontier Foundation que justifiquem o uso dessa tecnologia. Cidades como Los Angeles e San Francisco, por exemplo, já estão sendo mais transparentes nesse sentido, mas ainda restam alguns lugares que se negam a dividir essas informações.
O som do tiro
Outra tecnologia bastante interessante e que pouca gente conhece na hora de lidar com o problema da segurança pública é o chamado Gunshot Detection System, ou apenas GDS. Como o próprio nome sugere, trata-se de um sistema que identifica quando um disparo é feito e automaticamente informa as autoridades sobre o ocorrido.
Esse é um conceito que ainda precisa ser refinado, mas que já demonstra potencial e até alguns resultados positivos. Para isso, ele usa alguns sensores que são instalados em pontos considerados de risco e capta o som do tiro e indica a posição exata do ocorrido, permitindo que os oficiais vão até lá o mais rápido possível.
Segundo o comissário de polícia de Mineola, onde o GDS foi testado, a ideia é dar mais agilidade a todo esse processo e acabar com a dependência de denúncias para que agentes possam trabalhar. William Flanagan conta que, nos bairros mais violentos, os tiros são tão comuns que a própria população não estranha e nem se assusta com aquilo, o que faz com que seja difícil para a delegacia acompanhar qualquer ocorrência mais grave. Assim, com a nova tecnologia, ninguém precisa dizer nada para que os policiais saibam que algo aconteceu por ali.
De acordo com o oficial, os criminosos que atuam nesses bairros mais violentos usam armas para demonstrar força e, por isso, costumam atirar para o alto ou mesmo contra prédios. E, com o sistema de detecção, esses indivíduos podem ser localizados e presos. Flanagam disse que, a partir desses dados, o departamento de polícia cruzou dados já conhecidos de suspeitos que atuavam naquela área para ajudar na identificação.
Em um exemplo citado por ele, uma guerra de gangues na cidade foi evitada porque o GDS localizou alguns disparos e, a partir de câmeras se segurança, os policiais reconheceram placas de carros e conseguiram se mobilizar a tempo de impedir o ataque.
Isso tudo ajudou a diminuir a incidência de tiros nessas áreas. Segundo o comissário, em 2010 foram identificados cerca de 337 disparos nas regiões analisadas. No ano seguinte, após a instalação da tecnologia, esse número caiu para apenas 77 — ou seja, uma redução de 80%. E a razão para isso é simples: as pessoas sabem que o GDS está ali e, por isso, evitam cometer o delito. Isso sem falar da própria ação preventiva da polícia.
O lado bom disso tudo é que, pelo menos no exemplo de Mineola, a instalação do sistema de monitoramento foi feito com o consentimento da comunidade. Flanagam explica que houve uma conversa com os moradores do bairro para saber se eles estavam de acordo com aquilo e foi somente após essa aceitação que os testes foram feitos.
Tecnologia é a solução?
É muito fácil imaginar como a tecnologia pode ser a solução para uma série de problemas de segurança pública. Afinal, exemplos não faltam de como essas novidades podem trazer benefícios à sociedade e resolver questões que ainda seguem pendentes no modelo atual.
Porém, ao mesmo tempo, isso também traz à tona outros problemas. Como ficou claro nos casos apresentados, cada inovação traz consigo outros debates e questões que precisam ser refletidos e contornados antes que essas medidas se tornem padrão em nossas ruas. De nada adianta abrir mão de nossa privacidade e direitos individuais em prol dessa falsa sensação de segurança? E nem se trata de "quem não deve não teme" ou qualquer outro argumento raso desse tipo. Afinal, se você se preocupa com sua privacidade na internet, por que os outros não podem fazer o mesmo em sua vizinhança?
Isso sem falar de outros pontos mais delicados. Como mostrado em alguns dos casos citados, a tecnologia pode ser muito bem usada para ajudar a comunidade, mas também abre brechas para abuso de poder e para ampliar o abismo social que temos em alguns lugares, inclusive no Brasil.
É claro que a tecnologia é uma grande aliada na segurança pública, mas ela precisa ser pensada e bem planejada antes de tudo. E não apenas para evitar esses conflitos com a própria sociedade, mas também para se organizar de modo que tudo funcione da maneira desejada. Caso contrário, o que tinha tudo para ser um benefício pode virar uma enorme dor de cabeça — e a ficção científica já nos deu vários exemplos do que acontece quando as coisas fogem do controle.
Via: Governing, Engadget, Electronic Forntier Foundation, Computer World, USA Today, CNBC